quinta-feira, 7 de junho de 2018

O futuro dos shopping centers é mais promissor do que pensa muita gente: as lições da RECon 2018

Um carreteiro percorre as vielas enlameadas de um vilarejo, durante a Idade Média, carregando corpos de vítimas da peste negra. À procura de clientes para seu serviço improvisado de transporte funerário, ele anuncia em voz alta: “tragam seus mortos”! Um homem vai ao encontro do carreteiro, carregando um idoso nas costas, e, antes que possa depositar o corpo na carroça, o velho grita: “eu não estou morto”! O carreteiro então recusa-se a levar alguém vivo, apesar do sujeito insistir que o velho está muito doente e que não deve demorar a morrer. Indeciso entre ganhar uns trocados e violar o ‘regulamento’ da empresa, o carreteiro pensa no que fazer, enquanto o idoso insiste que está bem de saúde. De repente, enfim decidido, o carreteiro dá uma paulada na cabeça do velho, embolsa o dinheiro e resolve o problema.
Essa cena faz parte do filme ‘Monty Python e o Cálice Sagrado’ e foi exibida por Valerie Richardson, Vice-Presidente de Real Estate da The Container Store e Chairman do International Council of Shopping Centers, durante sua apresentação na RECon 2018, maior evento da indústria de shoppings, que aconteceu de 20 a 23 de maio, em Las Vegas. Valerie estava, obviamente, ironizando aqueles que preconizam a morte dos shopping centers e parecem ansiosos por vê-los na carreta dos defuntos. A brincadeira foi bem recebida porque, hoje, esse é um fantasma que não assusta mais o setor. Ao contrário, consolida-se a ideia de que o shopping tem um belo futuro pela frente, com uma condição: é preciso que ele esteja disposto a evoluir. A própria constatação de que, pelos próximos dois anos, o posto de Chairman da poderosa associação de shopping centers será, pela primeira vez na história, ocupado por Valerie, uma varejista, já sinaliza a disposição para mudanças.
A evolução do conceito dos shopping centers está sendo determinada por um conjunto de fatores. O principal, claro, é o papel cada vez mais relevante que o digital desempenha na vida das pessoas. Se pararmos para pensar, a separação entre o físico e o digital não faz mais sentido. Na verdade, são dois lados da mesmíssima moeda. No entanto, como admitiu Bill Taubman, CEO da Taubman Centers, durante seu painel na RECon, os shoppings ainda fazem muita distinção entre os dois universos, quando deveriam promover, isso sim, uma combinação do que existe de melhor nesses dois mundos. Isso significa, na prática, abraçar o omnichannel e não mais combatê-lo, o que pode até mesmo trazer vantagens. Quer um exemplo? Um crescente número de varejistas, com presença até então exclusiva no canal online, está abrindo lojas físicas, para permitir interações e experiências imersivas dos consumidores com suas marcas. Nomes como Bonobos, Warby Parker, Rent the Runway, Peloton e Indochino começam a invadir os malls americanos, sem falar na incrível Amazon Books, que já conta com 18 livrarias de tijolo e cimento nos Estados Unidos, a maioria localizada em shopping centers.
Mas nem tudo se limita ao digital. O estilo de vida dos millennials e o fato de que parte da população está voltando a morar nas cidades americanas, subvertendo a lógica do shopping suburbano, são também fortes influenciadores da transformação que afeta ambientação, mix de lojas e até o nome dos shopping centers. Segmentos como vestuário estão perdendo espaço para alimentação, serviços, entretenimento, beleza e bem-estar. Nos corredores, a ordem é abusar das áreas de descanso, investir forte em paisagismo, oferecer música agradável e tudo o mais que possa alongar a permanência e melhorar a experiência do consumidor. Tudo para tornar o mall de fato um terceiro lugar, onde as pessoas vão para aproveitar bons momentos, sozinhas ou acompanhadas.
Para atender às demandas dos novos frequentadores, uma onda de renovações atravessa os Estados Unidos – nada menos do que 90 shoppings regionais investiram cerca de US$ 8 bilhões em revitalização apenas nos últimos três anos, segundo levantamento da Jonas Lang LaSalle. Ao atribuir mais ênfase em experiência do que em compras, esses centros nem se reconhecem mais como shoppings. Prova disso é que 20% desses shoppings renovados mudaram até de nome, substituindo as palavras ‘shopping’ e ‘mall’ por expressões como ‘town center’, ‘village’ e ‘shoppes’.
As mudanças no tenant mix e os novos modelos de negócio das lojas provenientes da internet afetam não apenas o conceito dos shopping centers, mas também suas receitas. Uma grande indagação é: de onde virão os ingressos adicionais para compensar as perdas impostas pela substituição dos velhos lojistas por estes novos? Durante a RECon, diversos especialistas garantiram que em boa parte eles virão dos hotéis, residências e escritórios erguidos ao lado dos shoppings – o uso misto está virando norma. E também de receitas de publicidade, lojas pop-up e quiosques.
Estas transformações também afetarão o negócio dos shopping centers brasileiros? A resposta é: elas já estão afetando. Por serem originalmente um fenômeno urbano, ao contrário do que ocorreu nos Estados Unidos, os shoppings nacionais funcionam há mais tempo como um oásis em meio ao caos de grandes cidades e ponto de encontros. Atendem a população não apenas em suas necessidades de compra, mas ainda oferecendo serviços como academias, centros médicos, postos de serviços públicos, salões de beleza e outros mais. Coisas que os americanos somente agora começam a fazer.
Por tudo isso, fica claro que os shopping centers, aqui ou lá fora, não estão morrendo. Alguns deles, seja pela dificuldade de adaptar-se aos novos tempos ou pela eventual concorrência exagerada na região onde instalaram-se, podem até ficar pelo caminho. A verdade é que a maioria dos shoppings parou de viver do passado e de preocupar-se com o presente. A ordem agora é preparar-se para o futuro – que aliás, já começou.
Nota:
A GS&Malls coordenou, pelo 9o ano consecutivo, a Delegação da ABRASCE (Associação Brasileira de Shopping Centers), que participou da RECon, em Las Vegas.

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